sábado, 28 de novembro de 2015

Trecho de Sentença Original

Trecho de Sentença Proferida pelo Juiz de Direito Ronaldo Tovani, substituto da Comarca de Varginha, Minas Gerais:

"No dia cinco de outubro
Do ano ainda fluente
Em Carmo da Cahoeira
Terra de boa gente
Ocorreu um fato inédito
Que me deixou descontente.

O jovem Alceu da Costa
Conhecido por "Rolinha"
Aproveitando a madrugada
Resolveu sair da linha
Subtraindo de outrem
Duas saborosas galinhas.
(...)

Desta forma é que concedo
A esse homem da simplória
Com base no CPP
Liberdade provisória
Para que volte para casa
E passe a viver na glória.

Se virar homem honesto
E sair dessa sua trilha
Permaneça em Cachoeira
Ao lado de sua família
Devendo, se ao contrário,
Mudar-se para Brasília"

domingo, 12 de julho de 2015

A favor da vida - João Baptista Herkenhoff

Sou a favor da Vida. Contra a pena de morte e a guerra. A favor de políticas públicas que favoreçam o parto feliz e a maternidade protegida. Contra a falta de saneamento nos bairros pobres, causa de doenças e endemias que produzem a morte. Discordo da percepção limitada, embora possa ser honesta e sincera, dos que reduzem a defesa da vida à proibição do aborto quando, na verdade, a questão é muito mais ampla. Abomino a hipocrisia dos que sabem que a defesa da vida exige reformas estruturais, mas resumem o tema a um artigo de lei porque as reformas mexem com interesses estabelecidos e ofendem o deus dinheiro. Sou contra o pensamento dos que não admitem o aborto nem quando é praticado por médico para salvar a vida da mãe, mas aceitariam essa opção dolorosa se a parturiente fosse uma filha. Sou contra a opinião que obscurece as medidas sociais, pedagógicas, psicológicas, médicas que devem proteger o direito de nascer. Reprovo o posicionamento dos que lançam anátema contra a mulher estuprada que, no desespero, recorre ao aborto quando, na verdade, essa mulher deveria ser socorrida na sua dor. Se não tiver o heroísmo de dar à luz a criança gerada pela violência, seja compreendida e perdoada.

Hoje eu debato esta questão doutrinariamente mas, quando fui Juiz, eu me defrontei com o aborto em concreto. Lembro-me do caso de uma mocinha. Quase à morte foi levada para um hospital que a socorreu e comunicou depois o fato à Justiça. O Promotor, no cumprimento do seu dever, formulou denúncia que recebi. Designei interrogatório. Então, pela primeira vez, eu me defrontei com o rosto sofrido da mocinha. Aquele rosto me enterneceu mas não havia ainda nos autos elementos para uma decisão. Designei audiência e as testemunhas me informaram que a acusada tinha o costume de toda noite embalar um berço vazio como se no berço houvesse uma criança. No mesmo instante percebi o que estava ocorrendo. Nem sumário de defesa seria necessário. Disse a ela, chamando-a pelo nome:

“Madalena (nome fictício), você é muito jovem. Sua vida não acabou. Essa criança, que estava no seu ventre, não existe mais. Você pode conceber outra criança que alegre sua vida. Eu vou absolvê-la mas você vai prometer não mais embalar um berço vazio como se no berço estivesse a criança que permanece no seu coração. Eu nunca tive um caso igual o seu. Esse gesto de embalar o berço mostra que você tem uma alma linda, generosa, santa. Você está livre, vá em paz. Que Deus a abençoe.”

A decisão nestes termos, em nível de diálogo, foi dada naquele momento. Depois redigi a sentença no estilo jurídico, que exige técnica e argumentação.
 
João Baptista Herkenhoff é magistrado aposentado (ES), professor e escritor. E-mail:jbpherkenhoff@gmail.com Autor de Encontro do Direito com a Poesia (Rio, GZ Editora, 2012). Ver lista completa dos livros do autor no site: www.palestrantededireito.com.br

quinta-feira, 9 de julho de 2015

A lei e os dramas humanos - João Baptista Herkenhoff

Em outros tempos o cidadão comum supunha que o território do Direito e da Justiça fosse cercado por um muro. Só os iniciados – os que tinham consentimento dos potentados – poderiam atravessar a muralha. O avanço da cidadania, nos últimos tempos de Brasil, modificou substancialmente este panorama.

O mundo do Direito não é apenas o mundo dos advogados e outros profissionais da seara jurídica. Todas as pessoas, de alguma forma, acabam envolvidas nisto que poderíamos chamar de "universo jurídico". Daí a legitimidade da participação do povo nessa esfera da vida social.

Cidadãos ou profissionais, todos estamos dentro dessa nau. De minha parte foi como profissional que fiz a viagem. Comecei como advogado, integrei depois o Ministério Público. Após cumprir o rito de passagem, vim a ser Juiz de Direito porque a magistratura era mesmo o meu destino. Eu seria juiz no Espírito Santo, como juiz foi, não no Espírito Santo, meu avô pernambucano – Pedro Carneiro Estellita Lins. Esse avô, estudioso e doce, exerceu tamanho fascínio sobre mim que determinou a escolha profissional que fiz.

Meu caminho, nas sendas do Direito, foi marcado de sofrimento em razão de conflitos íntimos.

Sempre aprendi que o juiz está submetido à lei. E continuo seguro de que este princípio é verdadeiro. Abolíssemos a lei como limitação do poder e estaria instaurado o regime do arbítrio.

Não obstante a aceitação de que o "regime de legalidade" é uma conquista do Direito e da Cultura, esta premissa não deve conduzir à conclusão de que os juízes devam devotar à lei um culto idólatra.

Uma coisa é a lei abstrata e geral. Outra coisa é o caso concreto, dentro do qual se situa a condição humana.

À face do caso concreto a difícil missão do juiz é trabalhar com a lei para que prevaleça a Justiça.

Não foram apenas os livros que me ensinaram esta lição, mas também a vida, a dramaticidade de muitas situações.

Há uma hierarquia de valores a ser observada.

Não é num passe de mágica que se faz a travessia da lei ao Direito. Muito pelo contrário, o caminho é difícil. Exige critério, sensibilidade e ampla cultura geral ao lado da cultura simplesmente jurídica.

O jurista não lida com pedras de um xadrez, mas com pessoas, dramas e angústias humanas. Não é através do manejo dos silogismos que se desvenda o Direito, tantas vezes escondido nas roupagens da lei. O olhar do verdadeiro jurista vai muito além dos silogismos.

Da mesma forma que os cidadãos em geral não podem fechar os olhos para as coisas do Direito, o estudioso do Direito não pode limitar-se ao estreito limite das questões jurídicas. O jurista que só conhece Direito acaba por ter do próprio Direito uma visão defeituosa e fragmentada.

Estamos num mundo de intercâmbio, diálogo, debate.

Se quisermos servir ao bem comum, contribuir com o nosso saber para o avanço da sociedade, impõe-se que abramos nosso espírito a uma curiosidade variada e universal. 

João Baptista Herkenhoff, magistrado aposentado,  Livre-Docente da Universidade Federal do Espírito Santo, escritor e palestrante. Autor de: Dilemas de um juiz: a aventura obrigatória (Rio, GZ Editora). E-mail:jbpherkenhoff@gmail.comLista dos livros do autor:  www.palestrantededireito.com.br

Ética de Advogados e Juízes - Texto de João Baptista Herkenhoff

A advocacia e a magistratura têm códigos de ética diferentes.

Há deveres comuns aos dois encargos como, por exemplo, o amor ao trabalho, a pontualidade, a urbanidade, a honestidade.

Quanto à pontualidade, os advogados são ciosos de que não podem dormir no ponto. Sabem das consequências nefastas de eventuais atrasos. Os clientes podem ser condenados à revelia se os respectivos defensores não atendem ao pregão.

Já relativamente aos juízes, nem sempre compreendem que devem ser atentos aos prazos. Fazem tabula rasa da advertência de Rui Barbosa: “Justiça tardia não é Justiça, senão injustiça qualificada.”

Vamos agora aos pontos nos quais deveres de advogados e juízes não são coincidentes.

O juiz deve ser imparcial. É seu mais importante dever, pois é o fiel da balança. Se o juiz de futebol deve ser criterioso ao marcar faltas, ou anular gols, quão mais criterioso deve ser o Juiz de Direito que decide sobre vida, honra, família, bens.

Já o advogado é sempre parcial, daí que se chama “advogado da parte”. Deve ser fiel a seu cliente e leal na relação com o adversário.

O juiz deve ser humilde. A virtude da humildade só faz engrandecê-lo. Não é pela petulância que o juiz conquista o respeito da comunidade. Angaria respeito e estima na medida em que é digno, reto, probo. A toga tem um simbolismo, mas a toga, por si só, de nada vale. Uma toga moralmente manchada envergonha, em vez de enaltecer.

O juiz deve ser humano, cordial, fraterno. Deve compreender que a palavra pode mudar a rota de uma vida. Diante do juiz, o cidadão comum sente-se pequeno. O humanismo pode diminuir esse abismo, de modo que o cidadão se sinta pessoa, tão pessoa e ser humano quanto o próprio juiz.

A função de ser juiz não é um emprego. Julgar é missão, é empréstimo de um poder divino. Tenha o juiz consciência de sua pequenez diante da tarefa que lhe cabe. A rigor, o juiz deveria sentenciar de joelhos.

As decisões dos juízes devem ser compreendidas pelas partes e pela coletividade. É perfeitamente possível decidir as causas, por mais complexas que sejam, com um linguajar que não roube dos cidadãos o direito de compreender as razões que justificam as conclusões.

Juízes e advogados devem ser respeitosos no seu relacionamento. Compreendam os juízes que os advogados são indispensáveis à prática da Justiça. É totalmente inaceitável que um magistrado expulse da sala de julgamento um advogado, ainda que esse advogado seja impertinente nas suas alegações, desarrazoado nos seus pedidos. Em algumas situações, a impertinência do advogado não é defeito, mas virtude. Valha-nos a sabedoria popular: “Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura.”

João Baptista Herkenhoff, 79 anos, magistrado aposentado,  Livre-Docente da Universidade Federal do Espírito Santo, escritor, palestrante. Autor de: Dilemas de um juiz: a aventura obrigatória (Rio, GZ Editora).

terça-feira, 26 de maio de 2015

trechos importantes do Livro de IED do Prof. Rizzatto Nunes

Trecho de um acórdão que absolveu um pobre rapaz que tinha sido condenado em primeira instância por trafegar sem licença, pois foi buscar peças para a máquina de colheita de cana-de-açúcar: "trata-se de um quase rústico, havendo já ação penal com ônus da honorária advocatícia, servindo de reprimenda eficaz(...)A interpretação generosa justifica-se assim em relação a um empregado cuja fata menor residiu no propósito laboral exclusivo. E tanto mais quando, na atualidade, constrasta com faltas maiores contravencionais(...)A condenação de um operário que apenas quis trabalhar, humilde, pobre, numa Federação de legislação unitária, ecoaria com o mesmo estrépido atroador dos motores sem escapes, das buzinas, das trituradoras de lixo, tudo pela madrugada adentro, com a complacência de preordenada surdez convencional(...)" (1º Tribunal de Alçada Criminal do Estado de SP, Boletim AASP n. 1.012, j em 22-12-1997)

Problemas com os operadores do Direitos: "(...)iniciemos apresentando o relato indignado de Lenio Luiz Streck. Assombrado com o escândalo do que ele chama de ´baixa constitucionalidade` e a ineficiência do texto constitucional brasileiro, especialmente no que respeita às garantias individuais e sociais, ele percebe que a hermenêutica jurídica´não convive pacificamente com princípios constitucionais como o da proporcionalidade, razoabilidade etc.`, ao que nós acrescentamos que também não ´convive bem`com o princípio da dignidade da pessoa humana e com o da equidade, como justiça no caso concreto" ( NUNES, Rizzato. Manual de introdução ao estudo do direito. 9 ed. São Paulo, Saraiva: 2009, p.320)

sexta-feira, 1 de maio de 2015

Maioridade Penal - João Baptista Herkenhoff

Não sou candidato a cargo algum, nem tenciono ganhar prêmio de qualquer natureza. Por este motivo não me preocupa aprovar ou desaprovar a opinião da maioria. O critério que me guia sempre, para acolher esta tese ou aquela tese, quando se debate um determinado assunto, é a fidelidade a minha consciência.
Discute-se neste momento a redução da maioridade penal. Se ocorrer a mudança constitucional que vai permitir o apenamento de menores, supõem os defensores da medida que os índices de criminalidade decrescerão.

A meu ver, trata-se de um ledo engano.

É certo que alguns delitos gravíssimos têm sido cometidos por adolescentes. Entretanto, em números globais, os crimes praticados por menores de dezoito anos representam apenas dez por cento do total. O alarme, relativamente a atos antissociais envolvendo menores, não espelha a realidade, se consideramos a linguagem estatística como válida para formar juízo a esse respeito.

 Suponho que a proposta de redução da idade penal acaba por esconder um problema e evitar o seu enfrentamento.  Precisamos de políticas públicas para assegurar uma vida digna a crianças e adolescentes.  Precisamos de mudanças estruturais que ataquem os verdadeiros males do país, e não "tapar goteira" com leis de fácil aprovação, porém de resultados práticos que irão decepcionar.

O sistema carcerário não é um sucesso, de modo a que se pensasse ser um mal privar crianças e adolescentes da possibilidade de desfrutar dos benefícios do sistema.  O sistema carcerário é péssimo e é de todo inconveniente incorporar um contingente de crianças e adolescentes a um sistema falido.
         
Mesmo como paliativo, a redução da maioridade penal não resolve o inquietante problema da criminalidade, da mesma forma que a responsabilização penal dos maiores, com presídios superlotados, não está solucionando a questão.

O Brasil terá de denunciar compromissos assumidos em convenções internacionais, se optar pela redução da maioridade penal. A “Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança”, aprovada pela Assembleia Geral e aberta à ratificação dos Estados em novembro de 1989, prevê a inimputabilidade penal do menor de 18 anos.  O Brasil subscreveu essa Convenção.

Não somos um país de irresponsáveis. Somos um país sério. A assinatura brasileira num pacto internacional não é jogo de esconde-esconde, tão ao agrado das crianças. Ficaremos desmoralizados, perante os olhos do mundo, se trairmos o compromisso que firmamos.

Os que querem reduzir a maioridade penal estão cientes destes fatos?
         
João Baptista Herkenhoff é Juiz de Direito aposentado (ES), professor e escritor. Membro da Academia Espírito-Santense de Letras. E-mail: jbpherkenhoff@gmail.com

sábado, 18 de abril de 2015

Juízes Divergentes - Texto de João Baptista Herkenhoff

João Baptista Herkenhoff
     
Um grande esforço é realizado pela Justiça no sentido de alcançar a convergência.

Neste sentido, procura-se a uniformização dos julgados. Com este objetivo são estabelecidas, por exemplo, súmulas da jurisprudência dominante.

Alguns tribunais adotam, como critério para a promoção dos juízes de grau inferior, verificar o número de suas sentenças confirmadas e reformadas. Alcançar um bom índice de decisões mantidas pelo superior instância seria prova de mérito.

Num certo aspecto a sintonia jurisprudencial é útil porque contribui para a segurança do Direito. É aconselhável que os cidadãos, as pessoas físicas e as pessoas jurídicas saibam se um determinado ato, uma determinada conduta, um determinado contrato coere ou não com as normas vigentes.

Sob um outro ângulo a fidelidade a princípios rígidos atenta contra o bom Direito. Uma coisa é a norma abstrata. Outra coisa é a situação concreta.

Quando nos deparamos com a norma abstrata cabe seguir o conselho latino: dura lex, sed lex (a lei é dura, mas é lei). À face, entretanto, da dramaticidade da vida, o princípio do “dura lex” pode conduzir à injustiça.

Se devesse sempre prevalecer o brocardo “a lei é dura, mas é lei”, seria mais econômico substituir os magistrados por computadores.

Todos aqueles que um dia foram juízes, promotores, advogados, ou frequentaram os fóruns, saberão recapitular casos em que, para fazer imperar o Direito, foi necessário abandonar a hermenêutica literal.

Como condenar uma mulher que registrou filho alheio como próprio, ofendendo um artigo do Código Penal, sem considerar que se tratava de uma pessoa ignorante que agiu com nobreza de intenção, sem prejudicar quem quer que seja!

Como condenar aquela mocinha que, estuprada, praticou o aborto, sem procurar entender o sofrimento que a atormentava?

Como não desprezar a solenidade das salas de audiência e chorar (sim, o juiz é humano, o juiz chora), como deixar de chorar quando um ex-preso entrega ao magistrado a medalha de Honra ao Mérito, conquistada na empresa onde trabalhava, declarando: “doutor, esta medalha é sua; se naquela tarde eu tivesse permanecido na prisão eu seria hoje um bandido.”

 Como deixar de lado o aspecto existencial do encontro das partes em geral com o juiz e reduzir esse encontro a um ato meramente burocrático, mecânico, frio. Como recusar o aperto de mão, a aproximação física, o olhar, todas as formas de expressão de humanidade para, em sentido contrário, colocar um biombo, uma barreira, uma proibição, separando o comum dos mortais da divindade que veste toga!

João Baptista Herkenhoff é magistrado aposentado (ES), professor e escritor.

sexta-feira, 17 de abril de 2015

Trechos de Injustiças - Citados por Rizzato Nunes em sua obra Manual de Introdução ao Estudo do Direito.

Citando indiretamente Lenio Streck[1], Rizzatto Nunes traz alguns trechos de decisões que nos deixam atônitos, tendo em vista sua notória injustiça:

a)Um indivíduo foi processado criminalmente porque, na noite de Natal, foi a um baile e pagou o ingresso que custava R$6,00 (seis reais) com um cheque de R$ 60,00 (sessenta reais), que teria sido objeto de furto (essa a acusação).O promotor de Justiça – pasmem! – pediu ao juiz do feito a decretação da prisão preventiva (sic) do acusado. Fazendo voz com Lenio, pedimos ao estudante-leitor para imaginar o “grau de periculosidade” daquela pessoa.Deveríamos, inclusive, perceber o claro interesse público em proteger bailes de Natal desse quilate – e valor: R$6,00!Por sorte o Juiz não decretou a prisão preventiva, mas condenou o réu a 2 anos de reclusão; sentença reformada no Tribunal por falta de provas.

b) Uma pessoa foi presa preventivamente sob a acusação de ter furtado uma garrafa de vinho, alguns metros de mangueira plástica e um facão.
Foi preso e ficou recolhido ao xadrez por mais de 6 meses. Foi absolvido em grau de recurso por falta de provas.
Ficamos assim, nós brasileiros, livres preventivamente, por 6 meses, desse cidadão de tremenda periculosidade. Ainda bem...

c) Outro foi processado pelo crime de estelionato por ter comprado um limpador de para-brisas, pago com cheque de R$ 130,00 e recebido o troco de R$80,00. Segundo a acusação o cheque seria furtado.
Ficou, também, preso preventivamente. Este por dez meses. Foi condenado a 1 ano e 10 meses de reclusão e não pôde recorrer em liberdade. Por isso, como continuava preso, ficou no total encarceramento por 14 meses.
Conclusão: absolvido no Tribunal, por falta de provas.
Como é que essas coisas podem acontecer, sem qualquer responsabilidade aos causadores do dano à pessoa?

d) Dois cidadãos foram condenados a 2 anos de reclusão por terem “subtraído”, das águas de um bucólico açude no interior do Estado do Rio Grande do Sul, novos peixes tipo “traíra”, avaliados em – espantem-se – R$7,50!

e) Uma pessoa ficou presa por ordem da Justiça de Tubarão, Santa Catarina, pelo período de 60 dias, pela acusação de tentativa de furto de uma cédula de R$10,00, que nunca foi encontrada.
Bela decisão esta, a favor da economia e finanças nacionais. Seria cômico se não fosse tão trágica.

f) O ex-Governador do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho, em visita a uma Delegacia de Polícia de seu Estado, flagrou um indivíduo preso sob acusação de ter tentado furtar um aparelho de barbear descartável.
Acrescentamos que devia estar com a barba feita com aparelhos fornecidos pelo Estado...

g) Jaider Lopes dos Reis Lemes, inválido, por intermédio de sua mãe, requereu o benefício que lhe assegura a Constituição Federal (art. 203, V), de um salário mínimo mensal, que à época era de R$120,00.
A lei referida no Texto Constitucional diz que a pessoa inválida pode receber o benefício, desde que a renda per capita da família não exceda 25% do salário mínimo, ou, no caso, R$30,00.
Quando teve início o processo administrativo de Jaider unto ao INSS, seu pai recebia a “polpuda soma” de R$ 169,20 mensais. Com esses R$169,20, o pai de Jaider “sustentava” cinco pessoas, incluindo ele próprio, inválido.
O posto do INSS, tão cioso de suas obrigações e prestador de serviço público essencial, negou o pleito, pois efetuado o cálculo previsto na lei descobriu que 25% do salário do pai de Jader montavam a – assombrosos – R$33,84, acima, portanto, do teto legal. Aliás, muito acima: R$3,84!
A mãe de Jaider recorreu junto à 5ª Junta de Recursos do Distrito Federal e ganhou o benefício.
Contudo, a Divisão de Recursos e Benefícios do Ministério da Previdência – aolha aí nosso cioso serviço público...- recorreu a outra superior instância. A 2ª Coordenadoria de Consultoria Jurídica, por incrível que isto possa parecer, entendeu que: “a família do Autor (...) não é uma família miserável, ou seja, incapaz de prover a manutenção de pessoa portadora de deficiência...” (SIC!)
Os casos acima relatados, apesar da flagrante injustiça perpetuada contra as pessoas, refletem condutas ilegais e/ou fundadas em textos que violam a Constituição Federal, se não em abstrato, com certeza, in concreto, cuja solução tinha de ter sido outra(...)





[1] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e(m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1990 Apud NUNES, Rizzato. Manual de Introdução ao Estudo do Direito. 9 ed. São Paulo: Saraiva, p. 320-321.

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Trecho do Artigo "A Justiça é Possível" - Alysson Leandro Mascaro

Costumo indicar muitos trechos dos livros do Alysson Leandro Mascaro, haja vista seu amplo a sua postura crítica diante do Direito.
Com os alunos de Ciência Política e de IED, discutimos o Artigo  "A Justiça é Possível", retirado de sua obra Filosofia do Direito e Filosofia Polítca: a Justiça é Possível. São Paulo, Atlas, 2008).
Vejamos alguns trechos dessa obra, que ensejam debates e discussões fecundas:

"Só da miséria levantar-se-á o sonho da transformação, mas é preciso que nos fixemos no levante, não na miséria. Lembremos Gramsci, que nos falou sobre o otimismo da vontade e o realismo da razão. Mas não fiquemos estéreis pela razão, e sim racionalmente cheios de vontade." (MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito e Filosofia Polítca: a Justiça é Possível. São Paulo, Atlas, 2008, p. 3)

"Nem são todos os que, no direito, sensibilizam-se pelo justo. Muitos fogem dele, muitos querem os interesses fáceis, o dinheiro que compra advogados, juízes, promotores, policiais, réus e vítimas. Esta porta larga é rentável, e, diria com tristeza, muito mais rentável financeiramente que a porta estreita da busca da justiça, Mas, dentre tantos outros que fazem do direito uma profissão capitalista, que fazem do direito uma profissão liberal só no sentido de ser livre para se vender a vários donos, encontro ainda alunos esperançosos." (MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito e Filosofia Polítca: a Justiça é Possível. São Paulo, Atlas, 2008, p. 3-4)

"Abdiquei de oferecer aos meus alunos riso fáceis e honras que no direito não temos, para lhes dar, na estampa de suas faces, o horror da nossa realidade jurídica, o descaso e o desprezo de nossas elites do direito, o tormento de nossa ordem. E, além disso, não me bastava ver a expressão de incômodo, queria mais. Era preciso que do horror surgisse a esperança.
Jesus expulsou vendilhões do templo, foi crucificado, os seus perseguidos. Dirão alguns: que esperança poderá anunciar quem traz o incômodo e a desgraça para a ordem?!Dirão o mesmo de Sócrates, que esperança trará quem com a sua verdade fez por implodir a ordem social então reinante nos gregos? Mas é o chicote de Cristo expulsando vendilhões do templo que nos abriu as portas para dizer-nos que bastava a hipocrisia travestida de adoração a Deus. Sem Sócrates, acharíamos justa uma ordem que se assentava na escravidão.
Meus senhores, Sócrates já vai longe, Cristo também. Bem perto, no entanto, ficam seus exemplos. Olhai todos a multidão de miseráveis no mundo. Ainda hoje há famintos, ainda hoje há doentes sem tratamento, ainda hoje há crianças sem brinquedos e sem alegrias, velhos sem apoio para seus últimos momentos, pais de família sem o suficiente para o sustento dos seus. Mas há tudo isso não porque o mundo seja incapaz de dar a todos o suficiente. Se o mundo não tivesse terras férteis, não tivesse tecnologias para tratar os doentes, diríamos então que o problema é da sorte que nos legou um planeta desgraçado. Mas não é isso, senhores. Há crianças encasteladas, usufruindo duma abundância sem fim de atenções, e que têm, já bebês, contas bancárias que famílias inteiras nunca terão em sua vida. Há opulência nas classes dominantes, esbanjamento, divertimento a ouro, mesa farta, gozos sem fim, jóias caras, roupas de valor, desperdício sem par, ao lado de tanta miséria e dor. Isto tudo, meus senhores, só pode ser resumido em uma palavra: injustiça." (MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito e Filosofia Polítca: a Justiça é Possível. São Paulo, Atlas, 2008, p. 3-4)

"Os homens conservadores - e eu tenho muitos colegas de magistério e de direito assim, e tenho até mesmo alunos que, por mais jovens que sejam, já têm alma de velho - se estarrecem ao ouvir cânticos de transformação. Foi por isso que Sócrates morreu, foi por isso que Jesus foi crucificado. Por isso, ao seu tempo, quando cantava o Navio Negreiro, o aluno de direito Castro Alves foi motivo de escândalo para seus professores do Largo São Francisco. Não tenhais medo dos conservadores, deixai que a transformação gere o escândalo para a ordem estabelecida; porque escândalo verdadeiro é o mundo ter fome, é o doente não poder ter remédio, é uma criança ter acesso à educação e à transformação por ter tido a sorte de nascer em berço abastado.
Por isso, meus alunos, hoje que venho falar-vos, direi que justiça é transformação, e, ante a fala do reacionário ou do conservador de que a transformação é custosa ou a justiça é impossível, dir-lhes-ei que a transformação é possível. Hegel lia a filosofia nas páginas dos jornais; leiamos nossa história e nosso presente para confirmarmos nossas possibilidades do futuro." (MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito e Filosofia Polítca: a Justiça é Possível. São Paulo, Atlas, 2008, p. 4)

"A América Latina toda tornou-se neoliberal na década de 90. Perdeu o passo com sua própria história de libertação, e o resultado de tudo foi um grau maior de miséria e de injustiça dentro dos seus próprios países. Nunca se viu tamanha desigualdade de rendas nos países subdesenvolvidos, bem como tal também nunca se viu na comparação entre os países pobres e os países ricos.
Ao mesmo tempo, o neoliberalismo não era uma lufada de iluminismo, mas a preparação da exacerbação capitalista(...)É arrogante e prepotente, porque se vale das armas do mais forte, e, principalmente, meus caros alunos de direito, o capitalismo reacionário dos nossos dias é essencialmente contrário ao direito. Ele abomina o direito internacional, ele abomina as leis sociais, ele abomina a correção de desigualdades, ele abomina os direitos das maiorias. Tudo em troca de lucros maiores (...)" (MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito e Filosofia Polítca: a Justiça é Possível. São Paulo, Atlas, 2008, p. 7)

"Não nos contentemos com os direitos civis e políticos apenas; queiramos estes direitos e os direitos sociais. Não nos contentemos com uma nação juridicamente cidadã; queiramos um país socialmente cidadão e justo. Queiramos, mais ainda, um mundo justo" ((MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito e Filosofia Polítca: a Justiça é Possível. São Paulo, Atlas, 2008, p. 8-9)

"Perguntarão alguns se transformar é possível, e eu lhes repetirei que a injustiça não é atávica, não é inexorável, porque ela é produto social, humano, e não da natureza. Se alguns disserem que custará caro lutar pela transformação, eu lhes responderei que a justiça não tem preço." ((MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito e Filosofia Polítca: a Justiça é Possível. São Paulo, Atlas, 2008, p. 9-10)

"Aprendestes com Hans Kelsen que direito é dever-ser. Dir-vos-ei, no entanto, que o que uns enxergam como dever-ser, enxergaremos nós como poder-ser. É do ser que se levanta o poder-ser, e não do dever-ser que se faz um ser. Da miséria nasce a luta pela justiça, pois não é de qualquer ordem preestabelecida que nascerá a realidade. Àqueles que tiverem olhos à filosofia, não cansarei de ensinar que a filosofia é a possibilidade. E àqueles que quiserem, mais do que ser técnicos em leis, ser juristas, então lhes direi que o direito é a possibilidade de um mundo justo.
Quando observardes, meus caros alunos, um mundo em que haja choro, dor, miséria, fraqueza, pusilanimidade, ainda que encontreis leis e instituições nesse mundo, abominai essa ordem, ela tem direito, mas é injusta. Quando encontrardes esperança, luta, resistência, alegria e a possibilidade de que toda a humanidade seja efetivamente solidária e fraterna, podereis saber, aí reside a verdadeira ação do jurista, aí reside o verdadeiro futuro do mundo. Falai bem alto aos esperançados: a justiça é possível" ((MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito e Filosofia Polítca: a Justiça é Possível. São Paulo, Atlas, 2008, p. 10)

segunda-feira, 30 de março de 2015

Novo salto

"O novo salto que penso deva ser dado, corajosamente, pelo aplicador do Direito, sobretudo pelo juiz, impõe que ele não se enclausure na sua ciência, causadora de rigidez perceptiva, mas que se abra às outras ciências, à Economia, à Política, à Sociologia, à Psicologia, e que se deixe tocar pela influência das correntes fenomenológica e existencialista, bem como das escolas sociológicas." (HERKENHOFF, João Baptista. Introdução ao Direito: abertura para o mundo do direito, síntese de princípios fundamentais. Rio de Janeiro: Thex)

domingo, 29 de março de 2015

Juiz Acomodado Está Servindo às Forças Sociais Dominantes (João Baptista Herkenhoff)

Extraído de: HERKENHOFF, João Baptista. Como Aplicar o Direito: (à luz de uma perspectiva axiológica, fenomenológica e sociológico-política).3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p 141.

O Juiz de Direito João Baptista Herkenhoff tornou-se conhecido da população da Grande Vitória no início de 1975, quando a imprensa divulgou a sentença pronunciada por ele no julgamento da empregada doméstica Neuza Fernandes, que ficou presa por três meses por ter sido denunciada à política por sua patroa que acusara Neuza de ter furtado 150 cruzeiro. Eis a íntegra da sentença:

“Considerando o pequeno valor do furto; considerando o minúsculo prejuízo sofrido pela vítima que, a rigor, se o Cristo não tivesse passado inutilmente por essa terra, em vez de procurar a polícia por causa de 150 cruzeiros, teria facilitado a ida da acusada para Governador Valadares, ainda mais porque ela havia revelado sua inadaptação a esta cidade, certamente inadaptação maior no próprio lar, por causa do padrasto; considerando que a acusada é quase uma menor, pois mal transpôs o limite cronológico da irresponsabilidade penal;  considerando que o Estado processa uma empregada doméstica que lesa seu patrão em 150 cruzeiros, mas não processa os patrões que lesam seus empregados, que lhes negam salário, que lhes furtam os mais sagrados direitos; considerando que o cárcere é um fator criminogênico e que não se pode mais tolerar que autores de pequenos delitos sejam encarcerados para nessa universidade do crime adquirirem, aí sim, intensa periculosidade local; relaxo a prisão de Neusa Fernandes, determinando que saia deste Palácio da Justiça em Liberdade. Lamento que a Justiça não esteja equipada para que o caso seja entregue a uma assistente social. Se assistente social não tenho, tenho o verbo, e acredito no verbo, porque ´o verbo se fez carne e habitou entre nós´`”

sábado, 28 de março de 2015

Sentenças com alma e paixão? - João Baptista Herkenhoff

  "Podem ter alma e paixão as sentenças que os juízes proferem?

Sentenças e despachos devem ser frios, equidistantes dos dramas tantas vezes presentes nas questões judiciais?
Pode a condição de Mãe fundamentar um despacho de soltura de uma acusada?
Essas perguntas, pelo que sinto, despertam a curiosidade de muitas pessoas, não apenas daquelas ligadas ao mundo do Direito.
A meu ver, o esquema legal da sentença não proíbe que ela tenha alma, que nela pulse a vida, e valores, e emoção, conforme o caso.
Em várias oportunidades, os jornais têm registrado sentenças marcadas pelo sentimento, pela empatia, sem desdouro para os magistrados que as subscrevem.
Na minha própria vida de juiz, senti muitas vezes que era preciso dar sangue e alma às sentenças. Para que Justiça se fizesse, não bastava a construção racional de um frio silogismo.
Este artigo contém, no seu bojo, o despacho que libertou Edna, a que ia ser Mãe.
Esta peça judicial resume minha concepção do Direito.
Como devolver à Edna, protagonista do caso, a liberdade, sem penetrar fundo na sua sensibilidade, na sua condição de pessoa humana? Foi o que tentei fazer.
Edna, uma pobre mulher, estava presa há 8 meses, prestes a dar à luz, porque fora apanhada portanto alguns gramas de maconha. Dei um despacho fulminante, carregado de emoção e da ira santa que a injustiça provoca.
Este despacho, quando a ele me refiro em palestras e cursos, encontra uma resposta tão forte junto aos ouvintes, que cedo à tentação de transcrevê-lo.
Talvez a transcrição ajude a responder as indagações que colocamos no início deste artigo.
Eis, pois, o despacho:
A acusada é multiplicadamente marginalizada: por ser mulher, numa sociedade machista; por ser pobre, cujo latifúndio são os sete palmos de terra dos versos imortais do poeta; por ser prostituta, desconsiderada pelos homens mas amada por um Nazareno que certa vez passou por este mundo; por não ter saúde; por estar grávida, santificada pelo feto que tem dentro de si, mulher diante da qual este Juiz deveria se ajoelhar, numa homenagem à maternidade, porém que, na nossa estrutura social, em vez de estar recebendo cuidados pré-natais, espera pelo filho na cadeia.
É uma dupla liberdade a que concedo neste despacho: liberdade para Edna e liberdade para o filho de Edna que, se do ventre da mãe puder ouvir o som da palavra humana, sinta o calor e o amor da palavra que lhe dirijo, para que venha a este mundo tão injusto com forças para lutar, sofrer e sobreviver.
Quando tanta gente foge da maternidade; quando milhares de brasileiras, mesmo jovens e sem discernimento, são esterilizadas; quando se deve afirmar ao Mundo que os seres têm direito à vida, que é preciso distribuir melhor os bens da Terra e não reduzir os comensais; quando, por motivo de conforto ou até mesmo por motivos fúteis, mulheres se privam de gerar, Edna engrandece hoje este Fórum, com o feto que traz dentro de si.
Este Juiz renegaria todo o seu credo, rasgaria todos os seus princípios, trairia a memória de sua Mãe, se permitisse sair Edna deste Fórum sob prisão.
Saia livre, saia abençoada por Deus, saia com seu filho, traga seu filho à luz, que cada choro de uma criança que nasce é a esperança de um mundo novo, mais fraterno, mais puro, algum dia cristão.
Expeça-se incontinenti o alvará de soltura.
Edna encontrou um companheiro e com ele constituiu família. Mudou inteiramente o rumo de sua vida. A criança, se fosse homem, teria o nome do juiz, conforme declarou na audiência. Mas nasceu-lhe uma menina que se chamou Elke, em homenagem a Elke Maravilha.
Onde estará Edna com sua filha?
Distante que esteja, eu a homenageio. Pela tarde em que a libertei, por essa simples tarde, valeu a pena ter sido juiz."( HERKENHOFF, João Baptista. Sentenças com alma e paixão? Disponível emhttp://www.lfg.com.br 24 junho. 2008. )

Citando Dom Quixote

"Para o futuro, esperamos que desvaneçam as saudades de épocas passadas cantadas pelo engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha quando, na realidade fantástica em que vivia, lembrava-se de Idades Douradas em que os homens ignoravam as palavras teu e meu, porque 'diziam-se de cor os conceitos amorosos da alma, de modo simples e singelo, tal como ela os concebia, sem buscar artificiosos rodeios de palavras para os tornar exagerados. Não havia a fraude, o engenho, nem a malícia, mesclando-se com a verdade e a lhaneza. A Justiça continha-se nos seus próprios termos, sem que ousassem turbar, nem ofender, os privilegiados e os interesseiros, que hoje tanto enxovalham, perturbam e perseguem. A lei arbitrária ainda não tinha tido assento no espírito dos juízes, porque não havia então o que julgar, nem quem fosse julgado'" (CAIS, Cleide Previtalli. O Processo Tributário. 8 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p.40-41)

sexta-feira, 27 de março de 2015

Belíssimo trecho do Professor Canotilho

"A ciência jurídica ensinada nas ´Escolas de Direito`oscila entre duas orientações fundamentais: a ´orientação profissional` e a ´orientação acadêmica`. A primeira procura fornecer um saber colocado diretamente ao serviço do jurista prático e das suas necessidades. A segunda, sem perder a dimensão praxeológica (irrenunciável ao direito), visa proporcionar um discurso com um nível teorético-científico (no plano dos conceitos, da construção, da argumentação) que compense a ´cegueira`do mero utilitarismo e evite a unidimensionalização pragmaticista do saber Jurídico" (CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra: Alamedina, p. 17)

terça-feira, 24 de março de 2015

Como ocorre o progresso do Direito, sob o aspecto substancial

Mais uma vez, para tratarmos sobre o assunto, pedimos vênia para citar o eminente professor João Baptista Herkenhoff:

"Opera-se o progresso do Direito, sob o aspecto substancial:

a) quando o jurista, sob a inspiração de um espírito crítico e construtivo, abandona a postura de servo do direito vigente;

b) quando o jurista recusa ao Direito o papel de força conservadora e aceita o desafio de ajudar a colocá-lo a serviço das forças progressistas;

c) quando o jurista abandona a cômoda posição de encastelar-se nos gabinetes e desce ao povo, e integra-se no povo, e participa da prática do povo, e repensa o Direito como o povo, e recria o Direito como o povo, "a partir das experiências do povo". (HERKENHOFF, João Baptista. Introdução ao Direito: abertura para o mndo do direito, síntese de princípios fundamentais. Rio de Janeiro: Thex, 2006, p. 63)

Utopia e Direito

O tema Utopia e Direito, importantíssimo, possui algumas grandes obras, dentre as quais destacamos o livro "Utopia e Direito: Ernst Bloch e a Ontologia Jurídica da Utopia" do Professor Alysson Leandro Mascaro,

Não obstante, hoje destacaremos alguns trechos do livro de IED do Professor João Baptista Herkenhoff.

"É a utopia que dá luzes para ver e julgar o Direito vigente na sociedade em que vivemos e para estigmatizá-lo como um Direito que apenas desempenha o papel de regulamentar a opressão; um Direito da desigualdade; um Direito injusto, porque, no processo da produção, privilegia o capital; um Direito que, consagrando essa distorção básica, faz com que dela decorra uma rede de distorções que maculam todos os institutos jurídicos."(HERKENHOFF, João Baptista. Introdução ao Direito. Rio de Janeiro: Thex, 2006, p. 15)

"É a utopia que dá instrumentos para ver e construir, pela luta, o Direito de amanhã: o Direito de igualdade; o Direito das maiorias, aquele que beneficiará quem produz, o Direito dos que hoje são oprimidos; o Direito que proscreverá a exploração do homem pelo homem, o Direito fraterno e não o Direito do lobo; o Direito que o povo vai escrever depois que conquistar o Poder, o Direito que nascerá das bases" (HERKENHOFF, João Baptista. Introdução ao Direito. Rio de Janeiro: Thex, 2006, p. 16)

"O presente pertence aos pragmáticos. O futuro é dos utopistas" (HERKENHOFF, João Baptista. Introdução ao Direito. Rio de Janeiro: Thex, 2006, p. 16)

segunda-feira, 23 de março de 2015

Trechos de uma linda sentença retirada do livro de IED do livro do Prof. João Batista Herkenhoff

Trechos de uma magnífica sentença, retirada do livro de IED do Prof. João Baptista Herkenhoff. Trata-se de um caso em que uma jovem universitária, após ter parado o trânsito por causa do "afogamento" do seu carro, foi multada por seis infrações e chamou o guarda de trânsito , conhecido como guarda-sorriso, de "guardinha". O referido agente a processou por desacato:
"Não se pode reduzir o juiz a mero porta-voz da lei, como queria Montesquieu.
O Direito não se esgota na lei. Esta revela, quando revela, uma de de suas faces. O Direito é fato social, vivo e palpitante(...)"
"A orientação da presente sentença tem precedente assinalável. O então Juiz e hoje Desembargador Substituto, Dr. Homero Mafra, absolveu dois jovens universitários, acusados de possuir e fumar maconha, embora reconhecendo expressamente a configuração do crime, para manter neles viva a esperança na misericórdia humana. (´A Gazeta`, edição de 8 de mais de 1973).
É dentro dessa visão do Direito que entendo deva Argentina R.M. ser absolvida. Não me parece socialmente justo retirar dessa jovem de 24 anos, aluna do Curso de Ciências Biológicas da UFES, a condição de primária, pelos fatos que o processo relata. Mesmo simplesmente multada, ela passa à condição de criminosa, ou seja, autora de um crime. Muitas portas lhe serão fechadas na vida, por ter criminalmente condenada, e esta consequência é desproporcional aos fatos narrados pelo processo.
Se se quer fazer da sentença um silogismo, se se quer fundar a jurisdição na lógica matemática, a acusada deve ser condenada.
Mas o juiz não é um aplicador mecânico da lei.
´A letra mata: o espírito vivifica`, disse o Apóstolo Paulo.
Toda norma penal contém uma advertência genérica, de disciplina social, que opera pela sua simples existência.
A aplicação da norma abstrata aos casos concretos é entregue a homens, os juizes.
Creio que o simples processo é, para Argentina R.M., aqui presente, advertência suficiente, além das multas de trânsito que lhe foram impostas.
Não me parece que a vítima, o guarda de trânsito José G.D. Morais, apelidado o ´Guarda-Sorriso`, só possa ter reparação moral com o apenamento criminal da moça.
A sentença anulada já proclamara o seu mérito e esta nova o reafirma. Era preciso que houvesse muitos guardas-sorriso, muitos homens-sorriso, muitas crianças-sorriso, para tornar menos agreste este mundo tão tenso, tão competitivo, tão cruel.
Com fundamento no art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, que invoco expressamente (art. 381, inciso IV, do Código de Processo Penal), lei, como é sabido, extensível a todas as esferas do Direito - dispositivo que permite ao juiz realizar amplamente a interpretação teológica de todo e qualquer preceito legal - ABSOLVO Argentina R.M. da imputação que lhe foi feita" (HERKENHOFF, João Baptista. Introdução ao Direito: abertura para o mundo do direito, síntese de princípios fundamentais. Rio de Janeiro, Thex, 2006, p. 355-356)

domingo, 22 de março de 2015

Resumo do Capítulo 2 (Lições Preliminares de Direito - Miguel Reale): O Direito e as Ciências Afins


Faz-se mister verificar quais as ligações do Direito, os seus nexos com outras ordens de conhecimento, especialmente com a Filosofia do Direito, a Teoria Geral do Direito e a Sociologia do Direito

a) Noção de Filosofia do Direito

“Filosofia” é uma palavra de origem grega, de philos (amizade, amor) e sophia (ciência, sabedoria). Filósofo não é o senhor de todas as verdades, mas apenas um fiel amigo do saber. A amizade significa a dedicação de um ser humano a outro, sem qualquer interesse, com sentido de permanência, de perenidade. Amizade constitui-se um laço permanente de dedicação. A “Filosofia”, portanto, poderia ser vista, de início, como dedicação desinteressada e constante ao bem e à verdade: dedicar-se ao conhecimento, de maneira permanente e não ocasional, sem visar intencionalmente a qualquer escopo prático ou utilitário, eis a condição primordial de todo e qualquer conhecimento filosófico.
No que se refere propriamente à Filosofia do Direito, seria ela uma perquirição permanente e desinteressada das condições morais, lógicas e históricas do fenômeno jurídico e da Ciência do Direito. O Direito é um fenômeno histórico-social sempre sujeito a variações e intercorrências, fluxos e refluxos no espaço e no tempo.
Se resumirmos os tipos de indagações formuladas, chegaremos a três ordens de pesquisas, a que a Filosofia do Direito responde: Que é Direito? Em que se funda ou se legitima o Direito? Qual o sentido da história do Direito?
Em conclusão, o filósofo do Direito indaga dos princípios lógicos, éticos e histórico-culturais do Direito.

b) Noção de Ciência do Direito

A Ciência do Direito, ou Jurisprudência – tomada esta palavra na sua acepção clássica - , tem por objeto o fenômeno jurídico tal como ele se encontra historicamente realizada.
A Ciência do Direito é sempre ciência de um Direito positivo, isto é, positivado no espaço e no tempo, como experiência efetiva, passada ou atual. Assim é que o Direito dos gregos antigos pode ser objeto de ciência, tanto como o da Grécia de nossos dias. Não há Ciência do Direito em abstrato, isto é, sem referência direta a um campo de experiência social.
Será essa referibilidade imediata à experiência a nota caracterizadora de uma investigação jurídica de natureza científico-positiva. Donde pode-se dizer que a ciência do Direito é uma forma de conhecimento positivo da realidade social segundo normas ou regras objetivadas, ou seja, tornadas objetivas, no decurso do processo histórico.
O Direito Positivo é o Direito que, em algum momento histórico, entrou em vigor, teve ou continua tendo eficácia.

c) Noção de Teoria Geral do Direito

A Ciência jurídica não fica circunscrita à análise destes ou daqueles quadros particulares de normas, mas procura estrutura-los segundo princípios ou conceitos gerais unificadores.
“Teoria”, do grego theoresis, significa a conversão de um assunto em problema, sujeito a indagação e pesquisa, a fim de superar a particularidade dos casos isolados, para englobá-los numa forma de compreensão, que correlacione entre si as partes e o todo. Já Aristóteles nos ensinava que não há ciência senão do genérico.
Para que se eleve ao plano de uma Teoria Geral do Direito, a Ciência Jurídica se elava representando a parte geral comum a todas as formas de conhecimento positivo do Direito, aquela na qual se fixam os princípios ou diretrizes capazes de elucidar-nos sobre a estrutura das regras jurídicas e sua concatenação lógica, bem como sobre os motivos que governam os distintos campos da experiência jurídica.
Alguns autores distinguem entre Teoria Geral do Direito e Enciclopédia Jurídica, atribuindo a esta a tarefa de elaborar uma súmula de cada uma das disciplinas do Direito, numa espécie de microcosmo jurídico.
Parece-nos de bem reduzido alcance esse cinerama jurídico. É à introdução ao Estudo do Direito que cabe, a nosso ver, dar uma noção geral de cada disciplina jurídica, mas sem a pretensão de realizar uma síntese das respectivas questões fundamentais.

d) Direito e Sociologia

Em linhas gerais, porém, pode-se dizer que a Sociologia tem por fim o estudo do fato social na estrutura e funcionalidade, para saber, em suma, como os grupos humanos se organizam e se desenvolvem, em função dos múltiplos fatores que atuam sobre as formas de convivência.
A Sociologia tem por objetivo verificar como a vida social comporta diversos tipos de regras, como reagem em relação a elas, nestas ou naquelas circunstâncias etc.
Hoje em dia, a Sociologia, sem perder o seu caráter de pesquisa global ou sistemática do fato social enquanto social, achega-se mais à realidade, sem a preocupação de atingir formas puras ou arquetípicas. Desenvolve-se antes como investigação das estruturas do fato social, inseparáveis de sua funcionalidade concreta, sem considerar acessórios ou secundários os “estudos de campo”, relativos a áreas delimitadas da experiência social.
A Sociologia Jurídica apresenta-se, hodiernamente, como uma ciência positiva que procura se valer de rigorosos dados estatísticos para compreender como as normas jurídicas se apresentam efetivamente, isto é, como experiência humana, com resultados que não raro se mostram bem diversos dos que eram esperados pelo legislador. A Sociologia Jurídica não vis à norma jurídica como tal, mas sim à sua eficácia ou efetividade, no plano do fato social.
Desnecessário é encarecer a importância da Sociologia do Direito para o jurista ou para o legislador. Se ela não tem finalidade normativa, no sentido de instaurar modelos de organização e de conduta, as suas conclusões são indispensáveis a quem tenha a missão de modelar os comportamentos humanos, para considera-los lícitos ou ilícitos.

e) Direito e Economia.

Entre os fins motivadores da conduta humana destacam-se os relativos à nossa própria subsistência e conservação, tendo as exigências vitais evidente caráter prioritário.
A regra é a satisfação primordial dos interesses relacionados com a vida e o seu desenvolvimento.
Esse tipo de ação, orientada no sentido da produção e distribuição de bens indispensáveis ou úteis à vida coletiva, é a razão de ser da Economia.
Segundo o materialismo histórico, o Direito não seria senão uma superestrutura, de caráter ideológico, condicionado pela infra-estrutura econômica. É esta que, no dizer de Marx, modela a sociedade, determinando as formas de Arte, de Moral ou de Direito, em função da vontade da classe detentora dos meios de produção. Quem comanda as forças econômicas, através delas plasma o Estado e o Direito, apresentando suas volições em roupagens ideológicas destinadas a disfarçar a realidade dos fatos.
Para Reale, essa teoria peca inclusive do vício lógico de conceber uma estrutura econômica anterior ao Direito e independente dele, quando, na realidade, o Direito está sempre presente, qualquer que seja a ordenação das forças econômicas. Por outro lado, quando uma nova técnica de produção determina a substituição de uma estrutura jurídica por outra, a nova estrutura repercute, por sua vez, sobre a vida econômica, condicionando-a. Para ele, há uma interação constante entre Economia e Direito, não se podendo afirmar que a primeira cause o segundo ou que o Direito seja mera “roupagem ideológica” de uma dada forma de produção.
Para Reale, portanto, há uma interação dialética entre o econômico e o jurídico, não sendo possível reduzir essa relação a nexos causais, nem tampouco a uma relação entre forma e conteúdo.

O Direito, segundo Reale, está cheio de regras que disciplinam atos totalmente indiferentes ou alheios a quaisquer finalidades econômicas. Seria próprio do Direito receber os valores econômicos, artísticos, religosos etc., sujeitando-os às suas próprias estruturas e fins, tornando-os, assim, jurídicos na medida e enquanto os integra em seu ordenamento. 

Resumo do Capítulo 1 (Lições Preliminares de Direito - Miguel Reale) Objeto e Finalidade da Introdução ao Estudo do Direito

a)Noção elementar de Direito

Aos olhos do homem comum o Direito é lei e ordem, isto é, um conjunto de regras obrigatórias que garante a convivência social graças ao estabelecimento de limites à ação de cada um de seus membros. Assim sendo, quem age de conformidade com essas regras comporta-se direito; quem não o faz, age torto.
O Direito corresponde à exigência essencial e indeclinável de uma convivência ordenada, pois nenhuma sociedade poderia subsistir sem um mínimo de ordem, de direção e solidariedade.
Santi Romano concebeu-o como “realização de convivência ordenada”.
A experiência jurídica se forma da relação entre os homens, por isso denominadas relações intersubjetivas, por envolverem sempre dois ou mais sujeitos. Daí a sempre nova lição de um antigo brocardo: ubi societas, ibi jus (onde está a sociedade está o Direito). A recíproca também é verdadeira: ubi jus, ibi societas.
O Direito é, por conseguinte, um fato ou fenômeno social.
Somente num estágio bem maduro da civilização que as regras jurídicas adquirem estrutura e valor próprios, quando a humanidade passa a considerar o Direito como algo merecedor de estudos autônomos.
Não é necessário enfatizar a alta significação dessa conversão de um fato (e, de início, o fato da lei ligava-se ao fado, ao destino, a um mandamento divino) em um fato teórico, isto é, elevado ao plano da consciência dos respectivos problemas.

b) Multiplicidade e Unidade do Direito

O Direito divide-se, em primeiro lugar, em duas grandes classes: o Direito Privado e o Direito Público. As relações que se referem ao Estado e traduzem o predomínio do interesse coletivo são chamadas relações públicas, ou de Direito Público. Porém, o homem não vive apenas em relação com o Estado mas também e principalmente com seus semelhantes: a relação que existe entre pai e filho, ou então, entre quem compra e vende determinado bem, não é uma relação que interessa de maneira direta ao Estado, mas sim ao indivíduo enquanto particular. Essas são as relações de Direito Privado.
O Direito é um conjunto de estudos discriminados : abrange um tronco com vários ramos; cada um desses ramos tem o nome de disciplina.
No conceito de disciplina há sempre a ideia de limite discriminado o que pode, ou deve ou o que não deve ser feito, mas dando-se a razão dos limites estabelecidos à ação.
Há, em cada comportamento humano, a presença, embora indireta, do fenômeno jurídico: o Direito está pelo menos pressuposto em cada ação do homem que se relacione com outro homem.
Quando, várias espécies de normas do mesmo gênero se correlacionam, constituindo campos distintos de interesse e implicando ordens correspondentes de pesquisa, temos as diversas disciplinas jurídicas, sendo necessário apreciá-las no seu conjunto unitário, para que não se pense que cada uma delas existe independentemente das outras. As disciplinas jurídicas representam e refletem um fenômeno jurídico unitário que precisa ser examinado. Um dos primeiros objetivos da Introdução ao Estudo do Direito é a visão panorâmica e unitária das disciplinas jurídicas.  

c) Complementaridade do Direito

A segunda finalidade da Introdução ao Estudo do Direito é determinar a complementaridade das disciplinas jurídicas, ou o sentido sistemático da unidade do fenômeno jurídico.
As ciências jurídicas não obedecem uma unidade física ou orgânica. A Ciência Jurídica obedece ao terceiro tipo de unidade, o finalístico ou teleológico. A ideia de fim deve ser reservada ao plano dos fatos humanos, sociais ou históricos.

d) Linguagem do Direito

Cada ciência exprime-se numa linguagem. Onde quer que exista uma ciência, existe uma linguagem correspondente. Os juristas falam uma linguagem própria e devem ter orgulho de sua linguagem multimilenar, dignidade que bem poucas ciências podem invocar.
Sem a linguagem do Direito não haverá possibilidade de comunicação.
Uma das finalidades de nosso estudo é esclarecer ou determinar o sentido dos vocábulos jurídicos, traçando as fronteiras das realidades e das palavras.
e) O Direito no Mundo da Cultura
Devemos colocar o fenômeno jurídico e a Ciência do Direito na posição que lhes cabe em confronto com os demais campos da ação e do conhecimento. A quarta missão da nossa disciplina consiste em localizar o Direito no mundo da cultura no universo do saber humano. Que relações prendem o Direito à Economia? Que laços existem entre o fenômeno jurídico e o fenômeno artístico? Que relações existem entre o Direito e a Religião? Quais os influxos e influências que a técnica e as ciências físico-matemáticas exercem sobre os fatos jurídicos? É preciso que cada qual conheça seu mundo, o que é uma forma de conhecer-se a si mesmo.

f) O método no Direito

Na introdução ao Estudo do Direito são adquiridas as noções básicas do método jurídico. Método é o caminho que deve ser percorrido para a aquisição da verdade, ou, por outras palavras, de um resultado exato ou rigorosamente verificado. Sem método não há ciência. Quando dizemos que temos ciência de uma coisa é porque verificamos o que a seu respeito se enuncia. A ciência é uma verificação de conhecimentos, e um sistema de conhecimentos verificados. Cada ciência tem a sua forma de verificação.
Quem está no primeiro ano de uma Faculdade de Direito deve receber indicações para a sua primeira viagem quinquenal, os elementos preliminares indispensáveis para situar-se no complexo domínio do Direito, cujos segredos não bastará a vida toda para desvendar.

g) Natureza da Introdução ao Estudo do Direito

Trata-se de ciência introdutória, como a própria palavra está dizendo, ou seja, uma ciência propedêutica, na qual o elemento de arte é decisivo. Quem escreve um livro de Introdução ao Estudo do Direito compõe artisticamente dados de diferentes ramos do saber, imprimindo-lhes um endereço que é a razão de sua unidade.

Trata-se de um sistema de conhecimento recebidos de múltiplas fontes de informação, destinado a oferecer os elementos essenciais ao estudo do Direito, em termos de linguagem e de método, com uma visão preliminar das partes que o compõem e de sua complementaridade, bem como de sua situação na história da cultura.