sábado, 18 de abril de 2015

Juízes Divergentes - Texto de João Baptista Herkenhoff

João Baptista Herkenhoff
     
Um grande esforço é realizado pela Justiça no sentido de alcançar a convergência.

Neste sentido, procura-se a uniformização dos julgados. Com este objetivo são estabelecidas, por exemplo, súmulas da jurisprudência dominante.

Alguns tribunais adotam, como critério para a promoção dos juízes de grau inferior, verificar o número de suas sentenças confirmadas e reformadas. Alcançar um bom índice de decisões mantidas pelo superior instância seria prova de mérito.

Num certo aspecto a sintonia jurisprudencial é útil porque contribui para a segurança do Direito. É aconselhável que os cidadãos, as pessoas físicas e as pessoas jurídicas saibam se um determinado ato, uma determinada conduta, um determinado contrato coere ou não com as normas vigentes.

Sob um outro ângulo a fidelidade a princípios rígidos atenta contra o bom Direito. Uma coisa é a norma abstrata. Outra coisa é a situação concreta.

Quando nos deparamos com a norma abstrata cabe seguir o conselho latino: dura lex, sed lex (a lei é dura, mas é lei). À face, entretanto, da dramaticidade da vida, o princípio do “dura lex” pode conduzir à injustiça.

Se devesse sempre prevalecer o brocardo “a lei é dura, mas é lei”, seria mais econômico substituir os magistrados por computadores.

Todos aqueles que um dia foram juízes, promotores, advogados, ou frequentaram os fóruns, saberão recapitular casos em que, para fazer imperar o Direito, foi necessário abandonar a hermenêutica literal.

Como condenar uma mulher que registrou filho alheio como próprio, ofendendo um artigo do Código Penal, sem considerar que se tratava de uma pessoa ignorante que agiu com nobreza de intenção, sem prejudicar quem quer que seja!

Como condenar aquela mocinha que, estuprada, praticou o aborto, sem procurar entender o sofrimento que a atormentava?

Como não desprezar a solenidade das salas de audiência e chorar (sim, o juiz é humano, o juiz chora), como deixar de chorar quando um ex-preso entrega ao magistrado a medalha de Honra ao Mérito, conquistada na empresa onde trabalhava, declarando: “doutor, esta medalha é sua; se naquela tarde eu tivesse permanecido na prisão eu seria hoje um bandido.”

 Como deixar de lado o aspecto existencial do encontro das partes em geral com o juiz e reduzir esse encontro a um ato meramente burocrático, mecânico, frio. Como recusar o aperto de mão, a aproximação física, o olhar, todas as formas de expressão de humanidade para, em sentido contrário, colocar um biombo, uma barreira, uma proibição, separando o comum dos mortais da divindade que veste toga!

João Baptista Herkenhoff é magistrado aposentado (ES), professor e escritor.

sexta-feira, 17 de abril de 2015

Trechos de Injustiças - Citados por Rizzato Nunes em sua obra Manual de Introdução ao Estudo do Direito.

Citando indiretamente Lenio Streck[1], Rizzatto Nunes traz alguns trechos de decisões que nos deixam atônitos, tendo em vista sua notória injustiça:

a)Um indivíduo foi processado criminalmente porque, na noite de Natal, foi a um baile e pagou o ingresso que custava R$6,00 (seis reais) com um cheque de R$ 60,00 (sessenta reais), que teria sido objeto de furto (essa a acusação).O promotor de Justiça – pasmem! – pediu ao juiz do feito a decretação da prisão preventiva (sic) do acusado. Fazendo voz com Lenio, pedimos ao estudante-leitor para imaginar o “grau de periculosidade” daquela pessoa.Deveríamos, inclusive, perceber o claro interesse público em proteger bailes de Natal desse quilate – e valor: R$6,00!Por sorte o Juiz não decretou a prisão preventiva, mas condenou o réu a 2 anos de reclusão; sentença reformada no Tribunal por falta de provas.

b) Uma pessoa foi presa preventivamente sob a acusação de ter furtado uma garrafa de vinho, alguns metros de mangueira plástica e um facão.
Foi preso e ficou recolhido ao xadrez por mais de 6 meses. Foi absolvido em grau de recurso por falta de provas.
Ficamos assim, nós brasileiros, livres preventivamente, por 6 meses, desse cidadão de tremenda periculosidade. Ainda bem...

c) Outro foi processado pelo crime de estelionato por ter comprado um limpador de para-brisas, pago com cheque de R$ 130,00 e recebido o troco de R$80,00. Segundo a acusação o cheque seria furtado.
Ficou, também, preso preventivamente. Este por dez meses. Foi condenado a 1 ano e 10 meses de reclusão e não pôde recorrer em liberdade. Por isso, como continuava preso, ficou no total encarceramento por 14 meses.
Conclusão: absolvido no Tribunal, por falta de provas.
Como é que essas coisas podem acontecer, sem qualquer responsabilidade aos causadores do dano à pessoa?

d) Dois cidadãos foram condenados a 2 anos de reclusão por terem “subtraído”, das águas de um bucólico açude no interior do Estado do Rio Grande do Sul, novos peixes tipo “traíra”, avaliados em – espantem-se – R$7,50!

e) Uma pessoa ficou presa por ordem da Justiça de Tubarão, Santa Catarina, pelo período de 60 dias, pela acusação de tentativa de furto de uma cédula de R$10,00, que nunca foi encontrada.
Bela decisão esta, a favor da economia e finanças nacionais. Seria cômico se não fosse tão trágica.

f) O ex-Governador do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho, em visita a uma Delegacia de Polícia de seu Estado, flagrou um indivíduo preso sob acusação de ter tentado furtar um aparelho de barbear descartável.
Acrescentamos que devia estar com a barba feita com aparelhos fornecidos pelo Estado...

g) Jaider Lopes dos Reis Lemes, inválido, por intermédio de sua mãe, requereu o benefício que lhe assegura a Constituição Federal (art. 203, V), de um salário mínimo mensal, que à época era de R$120,00.
A lei referida no Texto Constitucional diz que a pessoa inválida pode receber o benefício, desde que a renda per capita da família não exceda 25% do salário mínimo, ou, no caso, R$30,00.
Quando teve início o processo administrativo de Jaider unto ao INSS, seu pai recebia a “polpuda soma” de R$ 169,20 mensais. Com esses R$169,20, o pai de Jaider “sustentava” cinco pessoas, incluindo ele próprio, inválido.
O posto do INSS, tão cioso de suas obrigações e prestador de serviço público essencial, negou o pleito, pois efetuado o cálculo previsto na lei descobriu que 25% do salário do pai de Jader montavam a – assombrosos – R$33,84, acima, portanto, do teto legal. Aliás, muito acima: R$3,84!
A mãe de Jaider recorreu junto à 5ª Junta de Recursos do Distrito Federal e ganhou o benefício.
Contudo, a Divisão de Recursos e Benefícios do Ministério da Previdência – aolha aí nosso cioso serviço público...- recorreu a outra superior instância. A 2ª Coordenadoria de Consultoria Jurídica, por incrível que isto possa parecer, entendeu que: “a família do Autor (...) não é uma família miserável, ou seja, incapaz de prover a manutenção de pessoa portadora de deficiência...” (SIC!)
Os casos acima relatados, apesar da flagrante injustiça perpetuada contra as pessoas, refletem condutas ilegais e/ou fundadas em textos que violam a Constituição Federal, se não em abstrato, com certeza, in concreto, cuja solução tinha de ter sido outra(...)





[1] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e(m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1990 Apud NUNES, Rizzato. Manual de Introdução ao Estudo do Direito. 9 ed. São Paulo: Saraiva, p. 320-321.

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Trecho do Artigo "A Justiça é Possível" - Alysson Leandro Mascaro

Costumo indicar muitos trechos dos livros do Alysson Leandro Mascaro, haja vista seu amplo a sua postura crítica diante do Direito.
Com os alunos de Ciência Política e de IED, discutimos o Artigo  "A Justiça é Possível", retirado de sua obra Filosofia do Direito e Filosofia Polítca: a Justiça é Possível. São Paulo, Atlas, 2008).
Vejamos alguns trechos dessa obra, que ensejam debates e discussões fecundas:

"Só da miséria levantar-se-á o sonho da transformação, mas é preciso que nos fixemos no levante, não na miséria. Lembremos Gramsci, que nos falou sobre o otimismo da vontade e o realismo da razão. Mas não fiquemos estéreis pela razão, e sim racionalmente cheios de vontade." (MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito e Filosofia Polítca: a Justiça é Possível. São Paulo, Atlas, 2008, p. 3)

"Nem são todos os que, no direito, sensibilizam-se pelo justo. Muitos fogem dele, muitos querem os interesses fáceis, o dinheiro que compra advogados, juízes, promotores, policiais, réus e vítimas. Esta porta larga é rentável, e, diria com tristeza, muito mais rentável financeiramente que a porta estreita da busca da justiça, Mas, dentre tantos outros que fazem do direito uma profissão capitalista, que fazem do direito uma profissão liberal só no sentido de ser livre para se vender a vários donos, encontro ainda alunos esperançosos." (MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito e Filosofia Polítca: a Justiça é Possível. São Paulo, Atlas, 2008, p. 3-4)

"Abdiquei de oferecer aos meus alunos riso fáceis e honras que no direito não temos, para lhes dar, na estampa de suas faces, o horror da nossa realidade jurídica, o descaso e o desprezo de nossas elites do direito, o tormento de nossa ordem. E, além disso, não me bastava ver a expressão de incômodo, queria mais. Era preciso que do horror surgisse a esperança.
Jesus expulsou vendilhões do templo, foi crucificado, os seus perseguidos. Dirão alguns: que esperança poderá anunciar quem traz o incômodo e a desgraça para a ordem?!Dirão o mesmo de Sócrates, que esperança trará quem com a sua verdade fez por implodir a ordem social então reinante nos gregos? Mas é o chicote de Cristo expulsando vendilhões do templo que nos abriu as portas para dizer-nos que bastava a hipocrisia travestida de adoração a Deus. Sem Sócrates, acharíamos justa uma ordem que se assentava na escravidão.
Meus senhores, Sócrates já vai longe, Cristo também. Bem perto, no entanto, ficam seus exemplos. Olhai todos a multidão de miseráveis no mundo. Ainda hoje há famintos, ainda hoje há doentes sem tratamento, ainda hoje há crianças sem brinquedos e sem alegrias, velhos sem apoio para seus últimos momentos, pais de família sem o suficiente para o sustento dos seus. Mas há tudo isso não porque o mundo seja incapaz de dar a todos o suficiente. Se o mundo não tivesse terras férteis, não tivesse tecnologias para tratar os doentes, diríamos então que o problema é da sorte que nos legou um planeta desgraçado. Mas não é isso, senhores. Há crianças encasteladas, usufruindo duma abundância sem fim de atenções, e que têm, já bebês, contas bancárias que famílias inteiras nunca terão em sua vida. Há opulência nas classes dominantes, esbanjamento, divertimento a ouro, mesa farta, gozos sem fim, jóias caras, roupas de valor, desperdício sem par, ao lado de tanta miséria e dor. Isto tudo, meus senhores, só pode ser resumido em uma palavra: injustiça." (MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito e Filosofia Polítca: a Justiça é Possível. São Paulo, Atlas, 2008, p. 3-4)

"Os homens conservadores - e eu tenho muitos colegas de magistério e de direito assim, e tenho até mesmo alunos que, por mais jovens que sejam, já têm alma de velho - se estarrecem ao ouvir cânticos de transformação. Foi por isso que Sócrates morreu, foi por isso que Jesus foi crucificado. Por isso, ao seu tempo, quando cantava o Navio Negreiro, o aluno de direito Castro Alves foi motivo de escândalo para seus professores do Largo São Francisco. Não tenhais medo dos conservadores, deixai que a transformação gere o escândalo para a ordem estabelecida; porque escândalo verdadeiro é o mundo ter fome, é o doente não poder ter remédio, é uma criança ter acesso à educação e à transformação por ter tido a sorte de nascer em berço abastado.
Por isso, meus alunos, hoje que venho falar-vos, direi que justiça é transformação, e, ante a fala do reacionário ou do conservador de que a transformação é custosa ou a justiça é impossível, dir-lhes-ei que a transformação é possível. Hegel lia a filosofia nas páginas dos jornais; leiamos nossa história e nosso presente para confirmarmos nossas possibilidades do futuro." (MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito e Filosofia Polítca: a Justiça é Possível. São Paulo, Atlas, 2008, p. 4)

"A América Latina toda tornou-se neoliberal na década de 90. Perdeu o passo com sua própria história de libertação, e o resultado de tudo foi um grau maior de miséria e de injustiça dentro dos seus próprios países. Nunca se viu tamanha desigualdade de rendas nos países subdesenvolvidos, bem como tal também nunca se viu na comparação entre os países pobres e os países ricos.
Ao mesmo tempo, o neoliberalismo não era uma lufada de iluminismo, mas a preparação da exacerbação capitalista(...)É arrogante e prepotente, porque se vale das armas do mais forte, e, principalmente, meus caros alunos de direito, o capitalismo reacionário dos nossos dias é essencialmente contrário ao direito. Ele abomina o direito internacional, ele abomina as leis sociais, ele abomina a correção de desigualdades, ele abomina os direitos das maiorias. Tudo em troca de lucros maiores (...)" (MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito e Filosofia Polítca: a Justiça é Possível. São Paulo, Atlas, 2008, p. 7)

"Não nos contentemos com os direitos civis e políticos apenas; queiramos estes direitos e os direitos sociais. Não nos contentemos com uma nação juridicamente cidadã; queiramos um país socialmente cidadão e justo. Queiramos, mais ainda, um mundo justo" ((MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito e Filosofia Polítca: a Justiça é Possível. São Paulo, Atlas, 2008, p. 8-9)

"Perguntarão alguns se transformar é possível, e eu lhes repetirei que a injustiça não é atávica, não é inexorável, porque ela é produto social, humano, e não da natureza. Se alguns disserem que custará caro lutar pela transformação, eu lhes responderei que a justiça não tem preço." ((MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito e Filosofia Polítca: a Justiça é Possível. São Paulo, Atlas, 2008, p. 9-10)

"Aprendestes com Hans Kelsen que direito é dever-ser. Dir-vos-ei, no entanto, que o que uns enxergam como dever-ser, enxergaremos nós como poder-ser. É do ser que se levanta o poder-ser, e não do dever-ser que se faz um ser. Da miséria nasce a luta pela justiça, pois não é de qualquer ordem preestabelecida que nascerá a realidade. Àqueles que tiverem olhos à filosofia, não cansarei de ensinar que a filosofia é a possibilidade. E àqueles que quiserem, mais do que ser técnicos em leis, ser juristas, então lhes direi que o direito é a possibilidade de um mundo justo.
Quando observardes, meus caros alunos, um mundo em que haja choro, dor, miséria, fraqueza, pusilanimidade, ainda que encontreis leis e instituições nesse mundo, abominai essa ordem, ela tem direito, mas é injusta. Quando encontrardes esperança, luta, resistência, alegria e a possibilidade de que toda a humanidade seja efetivamente solidária e fraterna, podereis saber, aí reside a verdadeira ação do jurista, aí reside o verdadeiro futuro do mundo. Falai bem alto aos esperançados: a justiça é possível" ((MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito e Filosofia Polítca: a Justiça é Possível. São Paulo, Atlas, 2008, p. 10)