sábado, 28 de novembro de 2015

Trecho de Sentença Original

Trecho de Sentença Proferida pelo Juiz de Direito Ronaldo Tovani, substituto da Comarca de Varginha, Minas Gerais:

"No dia cinco de outubro
Do ano ainda fluente
Em Carmo da Cahoeira
Terra de boa gente
Ocorreu um fato inédito
Que me deixou descontente.

O jovem Alceu da Costa
Conhecido por "Rolinha"
Aproveitando a madrugada
Resolveu sair da linha
Subtraindo de outrem
Duas saborosas galinhas.
(...)

Desta forma é que concedo
A esse homem da simplória
Com base no CPP
Liberdade provisória
Para que volte para casa
E passe a viver na glória.

Se virar homem honesto
E sair dessa sua trilha
Permaneça em Cachoeira
Ao lado de sua família
Devendo, se ao contrário,
Mudar-se para Brasília"

domingo, 12 de julho de 2015

A favor da vida - João Baptista Herkenhoff

Sou a favor da Vida. Contra a pena de morte e a guerra. A favor de políticas públicas que favoreçam o parto feliz e a maternidade protegida. Contra a falta de saneamento nos bairros pobres, causa de doenças e endemias que produzem a morte. Discordo da percepção limitada, embora possa ser honesta e sincera, dos que reduzem a defesa da vida à proibição do aborto quando, na verdade, a questão é muito mais ampla. Abomino a hipocrisia dos que sabem que a defesa da vida exige reformas estruturais, mas resumem o tema a um artigo de lei porque as reformas mexem com interesses estabelecidos e ofendem o deus dinheiro. Sou contra o pensamento dos que não admitem o aborto nem quando é praticado por médico para salvar a vida da mãe, mas aceitariam essa opção dolorosa se a parturiente fosse uma filha. Sou contra a opinião que obscurece as medidas sociais, pedagógicas, psicológicas, médicas que devem proteger o direito de nascer. Reprovo o posicionamento dos que lançam anátema contra a mulher estuprada que, no desespero, recorre ao aborto quando, na verdade, essa mulher deveria ser socorrida na sua dor. Se não tiver o heroísmo de dar à luz a criança gerada pela violência, seja compreendida e perdoada.

Hoje eu debato esta questão doutrinariamente mas, quando fui Juiz, eu me defrontei com o aborto em concreto. Lembro-me do caso de uma mocinha. Quase à morte foi levada para um hospital que a socorreu e comunicou depois o fato à Justiça. O Promotor, no cumprimento do seu dever, formulou denúncia que recebi. Designei interrogatório. Então, pela primeira vez, eu me defrontei com o rosto sofrido da mocinha. Aquele rosto me enterneceu mas não havia ainda nos autos elementos para uma decisão. Designei audiência e as testemunhas me informaram que a acusada tinha o costume de toda noite embalar um berço vazio como se no berço houvesse uma criança. No mesmo instante percebi o que estava ocorrendo. Nem sumário de defesa seria necessário. Disse a ela, chamando-a pelo nome:

“Madalena (nome fictício), você é muito jovem. Sua vida não acabou. Essa criança, que estava no seu ventre, não existe mais. Você pode conceber outra criança que alegre sua vida. Eu vou absolvê-la mas você vai prometer não mais embalar um berço vazio como se no berço estivesse a criança que permanece no seu coração. Eu nunca tive um caso igual o seu. Esse gesto de embalar o berço mostra que você tem uma alma linda, generosa, santa. Você está livre, vá em paz. Que Deus a abençoe.”

A decisão nestes termos, em nível de diálogo, foi dada naquele momento. Depois redigi a sentença no estilo jurídico, que exige técnica e argumentação.
 
João Baptista Herkenhoff é magistrado aposentado (ES), professor e escritor. E-mail:jbpherkenhoff@gmail.com Autor de Encontro do Direito com a Poesia (Rio, GZ Editora, 2012). Ver lista completa dos livros do autor no site: www.palestrantededireito.com.br

quinta-feira, 9 de julho de 2015

A lei e os dramas humanos - João Baptista Herkenhoff

Em outros tempos o cidadão comum supunha que o território do Direito e da Justiça fosse cercado por um muro. Só os iniciados – os que tinham consentimento dos potentados – poderiam atravessar a muralha. O avanço da cidadania, nos últimos tempos de Brasil, modificou substancialmente este panorama.

O mundo do Direito não é apenas o mundo dos advogados e outros profissionais da seara jurídica. Todas as pessoas, de alguma forma, acabam envolvidas nisto que poderíamos chamar de "universo jurídico". Daí a legitimidade da participação do povo nessa esfera da vida social.

Cidadãos ou profissionais, todos estamos dentro dessa nau. De minha parte foi como profissional que fiz a viagem. Comecei como advogado, integrei depois o Ministério Público. Após cumprir o rito de passagem, vim a ser Juiz de Direito porque a magistratura era mesmo o meu destino. Eu seria juiz no Espírito Santo, como juiz foi, não no Espírito Santo, meu avô pernambucano – Pedro Carneiro Estellita Lins. Esse avô, estudioso e doce, exerceu tamanho fascínio sobre mim que determinou a escolha profissional que fiz.

Meu caminho, nas sendas do Direito, foi marcado de sofrimento em razão de conflitos íntimos.

Sempre aprendi que o juiz está submetido à lei. E continuo seguro de que este princípio é verdadeiro. Abolíssemos a lei como limitação do poder e estaria instaurado o regime do arbítrio.

Não obstante a aceitação de que o "regime de legalidade" é uma conquista do Direito e da Cultura, esta premissa não deve conduzir à conclusão de que os juízes devam devotar à lei um culto idólatra.

Uma coisa é a lei abstrata e geral. Outra coisa é o caso concreto, dentro do qual se situa a condição humana.

À face do caso concreto a difícil missão do juiz é trabalhar com a lei para que prevaleça a Justiça.

Não foram apenas os livros que me ensinaram esta lição, mas também a vida, a dramaticidade de muitas situações.

Há uma hierarquia de valores a ser observada.

Não é num passe de mágica que se faz a travessia da lei ao Direito. Muito pelo contrário, o caminho é difícil. Exige critério, sensibilidade e ampla cultura geral ao lado da cultura simplesmente jurídica.

O jurista não lida com pedras de um xadrez, mas com pessoas, dramas e angústias humanas. Não é através do manejo dos silogismos que se desvenda o Direito, tantas vezes escondido nas roupagens da lei. O olhar do verdadeiro jurista vai muito além dos silogismos.

Da mesma forma que os cidadãos em geral não podem fechar os olhos para as coisas do Direito, o estudioso do Direito não pode limitar-se ao estreito limite das questões jurídicas. O jurista que só conhece Direito acaba por ter do próprio Direito uma visão defeituosa e fragmentada.

Estamos num mundo de intercâmbio, diálogo, debate.

Se quisermos servir ao bem comum, contribuir com o nosso saber para o avanço da sociedade, impõe-se que abramos nosso espírito a uma curiosidade variada e universal. 

João Baptista Herkenhoff, magistrado aposentado,  Livre-Docente da Universidade Federal do Espírito Santo, escritor e palestrante. Autor de: Dilemas de um juiz: a aventura obrigatória (Rio, GZ Editora). E-mail:jbpherkenhoff@gmail.comLista dos livros do autor:  www.palestrantededireito.com.br

Ética de Advogados e Juízes - Texto de João Baptista Herkenhoff

A advocacia e a magistratura têm códigos de ética diferentes.

Há deveres comuns aos dois encargos como, por exemplo, o amor ao trabalho, a pontualidade, a urbanidade, a honestidade.

Quanto à pontualidade, os advogados são ciosos de que não podem dormir no ponto. Sabem das consequências nefastas de eventuais atrasos. Os clientes podem ser condenados à revelia se os respectivos defensores não atendem ao pregão.

Já relativamente aos juízes, nem sempre compreendem que devem ser atentos aos prazos. Fazem tabula rasa da advertência de Rui Barbosa: “Justiça tardia não é Justiça, senão injustiça qualificada.”

Vamos agora aos pontos nos quais deveres de advogados e juízes não são coincidentes.

O juiz deve ser imparcial. É seu mais importante dever, pois é o fiel da balança. Se o juiz de futebol deve ser criterioso ao marcar faltas, ou anular gols, quão mais criterioso deve ser o Juiz de Direito que decide sobre vida, honra, família, bens.

Já o advogado é sempre parcial, daí que se chama “advogado da parte”. Deve ser fiel a seu cliente e leal na relação com o adversário.

O juiz deve ser humilde. A virtude da humildade só faz engrandecê-lo. Não é pela petulância que o juiz conquista o respeito da comunidade. Angaria respeito e estima na medida em que é digno, reto, probo. A toga tem um simbolismo, mas a toga, por si só, de nada vale. Uma toga moralmente manchada envergonha, em vez de enaltecer.

O juiz deve ser humano, cordial, fraterno. Deve compreender que a palavra pode mudar a rota de uma vida. Diante do juiz, o cidadão comum sente-se pequeno. O humanismo pode diminuir esse abismo, de modo que o cidadão se sinta pessoa, tão pessoa e ser humano quanto o próprio juiz.

A função de ser juiz não é um emprego. Julgar é missão, é empréstimo de um poder divino. Tenha o juiz consciência de sua pequenez diante da tarefa que lhe cabe. A rigor, o juiz deveria sentenciar de joelhos.

As decisões dos juízes devem ser compreendidas pelas partes e pela coletividade. É perfeitamente possível decidir as causas, por mais complexas que sejam, com um linguajar que não roube dos cidadãos o direito de compreender as razões que justificam as conclusões.

Juízes e advogados devem ser respeitosos no seu relacionamento. Compreendam os juízes que os advogados são indispensáveis à prática da Justiça. É totalmente inaceitável que um magistrado expulse da sala de julgamento um advogado, ainda que esse advogado seja impertinente nas suas alegações, desarrazoado nos seus pedidos. Em algumas situações, a impertinência do advogado não é defeito, mas virtude. Valha-nos a sabedoria popular: “Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura.”

João Baptista Herkenhoff, 79 anos, magistrado aposentado,  Livre-Docente da Universidade Federal do Espírito Santo, escritor, palestrante. Autor de: Dilemas de um juiz: a aventura obrigatória (Rio, GZ Editora).

terça-feira, 26 de maio de 2015

trechos importantes do Livro de IED do Prof. Rizzatto Nunes

Trecho de um acórdão que absolveu um pobre rapaz que tinha sido condenado em primeira instância por trafegar sem licença, pois foi buscar peças para a máquina de colheita de cana-de-açúcar: "trata-se de um quase rústico, havendo já ação penal com ônus da honorária advocatícia, servindo de reprimenda eficaz(...)A interpretação generosa justifica-se assim em relação a um empregado cuja fata menor residiu no propósito laboral exclusivo. E tanto mais quando, na atualidade, constrasta com faltas maiores contravencionais(...)A condenação de um operário que apenas quis trabalhar, humilde, pobre, numa Federação de legislação unitária, ecoaria com o mesmo estrépido atroador dos motores sem escapes, das buzinas, das trituradoras de lixo, tudo pela madrugada adentro, com a complacência de preordenada surdez convencional(...)" (1º Tribunal de Alçada Criminal do Estado de SP, Boletim AASP n. 1.012, j em 22-12-1997)

Problemas com os operadores do Direitos: "(...)iniciemos apresentando o relato indignado de Lenio Luiz Streck. Assombrado com o escândalo do que ele chama de ´baixa constitucionalidade` e a ineficiência do texto constitucional brasileiro, especialmente no que respeita às garantias individuais e sociais, ele percebe que a hermenêutica jurídica´não convive pacificamente com princípios constitucionais como o da proporcionalidade, razoabilidade etc.`, ao que nós acrescentamos que também não ´convive bem`com o princípio da dignidade da pessoa humana e com o da equidade, como justiça no caso concreto" ( NUNES, Rizzato. Manual de introdução ao estudo do direito. 9 ed. São Paulo, Saraiva: 2009, p.320)

sexta-feira, 1 de maio de 2015

Maioridade Penal - João Baptista Herkenhoff

Não sou candidato a cargo algum, nem tenciono ganhar prêmio de qualquer natureza. Por este motivo não me preocupa aprovar ou desaprovar a opinião da maioria. O critério que me guia sempre, para acolher esta tese ou aquela tese, quando se debate um determinado assunto, é a fidelidade a minha consciência.
Discute-se neste momento a redução da maioridade penal. Se ocorrer a mudança constitucional que vai permitir o apenamento de menores, supõem os defensores da medida que os índices de criminalidade decrescerão.

A meu ver, trata-se de um ledo engano.

É certo que alguns delitos gravíssimos têm sido cometidos por adolescentes. Entretanto, em números globais, os crimes praticados por menores de dezoito anos representam apenas dez por cento do total. O alarme, relativamente a atos antissociais envolvendo menores, não espelha a realidade, se consideramos a linguagem estatística como válida para formar juízo a esse respeito.

 Suponho que a proposta de redução da idade penal acaba por esconder um problema e evitar o seu enfrentamento.  Precisamos de políticas públicas para assegurar uma vida digna a crianças e adolescentes.  Precisamos de mudanças estruturais que ataquem os verdadeiros males do país, e não "tapar goteira" com leis de fácil aprovação, porém de resultados práticos que irão decepcionar.

O sistema carcerário não é um sucesso, de modo a que se pensasse ser um mal privar crianças e adolescentes da possibilidade de desfrutar dos benefícios do sistema.  O sistema carcerário é péssimo e é de todo inconveniente incorporar um contingente de crianças e adolescentes a um sistema falido.
         
Mesmo como paliativo, a redução da maioridade penal não resolve o inquietante problema da criminalidade, da mesma forma que a responsabilização penal dos maiores, com presídios superlotados, não está solucionando a questão.

O Brasil terá de denunciar compromissos assumidos em convenções internacionais, se optar pela redução da maioridade penal. A “Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança”, aprovada pela Assembleia Geral e aberta à ratificação dos Estados em novembro de 1989, prevê a inimputabilidade penal do menor de 18 anos.  O Brasil subscreveu essa Convenção.

Não somos um país de irresponsáveis. Somos um país sério. A assinatura brasileira num pacto internacional não é jogo de esconde-esconde, tão ao agrado das crianças. Ficaremos desmoralizados, perante os olhos do mundo, se trairmos o compromisso que firmamos.

Os que querem reduzir a maioridade penal estão cientes destes fatos?
         
João Baptista Herkenhoff é Juiz de Direito aposentado (ES), professor e escritor. Membro da Academia Espírito-Santense de Letras. E-mail: jbpherkenhoff@gmail.com

sábado, 18 de abril de 2015

Juízes Divergentes - Texto de João Baptista Herkenhoff

João Baptista Herkenhoff
     
Um grande esforço é realizado pela Justiça no sentido de alcançar a convergência.

Neste sentido, procura-se a uniformização dos julgados. Com este objetivo são estabelecidas, por exemplo, súmulas da jurisprudência dominante.

Alguns tribunais adotam, como critério para a promoção dos juízes de grau inferior, verificar o número de suas sentenças confirmadas e reformadas. Alcançar um bom índice de decisões mantidas pelo superior instância seria prova de mérito.

Num certo aspecto a sintonia jurisprudencial é útil porque contribui para a segurança do Direito. É aconselhável que os cidadãos, as pessoas físicas e as pessoas jurídicas saibam se um determinado ato, uma determinada conduta, um determinado contrato coere ou não com as normas vigentes.

Sob um outro ângulo a fidelidade a princípios rígidos atenta contra o bom Direito. Uma coisa é a norma abstrata. Outra coisa é a situação concreta.

Quando nos deparamos com a norma abstrata cabe seguir o conselho latino: dura lex, sed lex (a lei é dura, mas é lei). À face, entretanto, da dramaticidade da vida, o princípio do “dura lex” pode conduzir à injustiça.

Se devesse sempre prevalecer o brocardo “a lei é dura, mas é lei”, seria mais econômico substituir os magistrados por computadores.

Todos aqueles que um dia foram juízes, promotores, advogados, ou frequentaram os fóruns, saberão recapitular casos em que, para fazer imperar o Direito, foi necessário abandonar a hermenêutica literal.

Como condenar uma mulher que registrou filho alheio como próprio, ofendendo um artigo do Código Penal, sem considerar que se tratava de uma pessoa ignorante que agiu com nobreza de intenção, sem prejudicar quem quer que seja!

Como condenar aquela mocinha que, estuprada, praticou o aborto, sem procurar entender o sofrimento que a atormentava?

Como não desprezar a solenidade das salas de audiência e chorar (sim, o juiz é humano, o juiz chora), como deixar de chorar quando um ex-preso entrega ao magistrado a medalha de Honra ao Mérito, conquistada na empresa onde trabalhava, declarando: “doutor, esta medalha é sua; se naquela tarde eu tivesse permanecido na prisão eu seria hoje um bandido.”

 Como deixar de lado o aspecto existencial do encontro das partes em geral com o juiz e reduzir esse encontro a um ato meramente burocrático, mecânico, frio. Como recusar o aperto de mão, a aproximação física, o olhar, todas as formas de expressão de humanidade para, em sentido contrário, colocar um biombo, uma barreira, uma proibição, separando o comum dos mortais da divindade que veste toga!

João Baptista Herkenhoff é magistrado aposentado (ES), professor e escritor.